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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Ilusão

Sem nos darmos conta disso, a insatisfação permeia todas as nossas experiências. Mesmo com aquelas que geralmente consideramos que nos proporcionam prazer, e que esse prazer é algo indiscutivelmente associado a essa experiência, não nos apercebemos que esse prazer é o cessar da insatisfação que sentimos entre o desejar viver essa experiência e a sua vivência efectiva. Isso acontece porque ao desejar viver uma experiência à qual associamos prazer e felicidade, automaticamente surge a insatisfação do desejo não realizado.
Mesmo quando erradamente atribuímos a uma dada experiência o potencial de nos proporcionar prazer e felicidade, achamos que esse potencial é inerente à experiência e não ao sujeito que a vive. Se essa inerência fosse real, então todos nós a viveríamos da mesma forma, o que não acontece, pois algo que proporciona muito prazer a alguém pode ser extremamente desagradável a outro, logo a forma como se vive depende do sujeito e não da experiência em si. Além do mais se a experiência desse a garantia de proporcionar prazer e felicidade, então a sua repetição ou continuação infinita não daria lugar à insatisfação como acontece em todos os casos, seja pelo medo (que é uma forma de insatisfação) dos prejuízos que pode causar a sua continuação, seja pela vontade de experimentar algo diferente (que também é outra forma de insatisfação). Não nos apercebendo disso e não vivendo presentes no momento, somos como abelhas que andam de flor em flor, sempre saltando de experiência em experiência, sempre insatisfeitos e sempre à procura do Santo Graal que julgamos ser “desta vez é que é, ISTO é que me trará felicidade e me deixará verdadeiramente satisfeito”.
A juntar a estas formas de insatisfação, existe ainda a de vivermos experiências que rejeitamos, do medo que elas se possam concretizar e do desejo que elas terminem quando se concretizam.
Vivemos num mundo dual em que classificamos tudo como bom ou mau agradável ou desagradável, e com base nisso sentimos desejo ou rejeitamos, o que leva sempre à insatisfação.
Alguns exemplos práticos:
- Quando estamos sentados ou deitados muito tempo, sentimos desconforto, temos de mudar de posição de vez em quando, mas seja qual for a nova posição que escolhamos, acabaremos por nos fartar dela e teremos que mudar para outra. E mais tarde ou mais cedo estamos absolutamente fartos e sentimos uma vontade crescente de nos levantarmos e mexermos, o facto de estarmos sentados ou deitados torna-se insuportável. Após andarmos, pouco a pouco começamos também a fartarmo-nos de andar e estarmos de pé e começamos a sentir vontade de nos sentarmos, a insatisfação do cansaço instala-se. Quanto mais tempo passar maior será essa vontade e mais o facto de estarmos a andar se tornará insuportável. Quando nos sentamos desaparece essa insatisfação e classificamos de prazer essa experiência, mas logo esse “prazer” dará lugar à insatisfação de estarmos sentados e volta tudo ao mesmo.
- Por vezes sentimos vontade de comer algo. Apetece-nos mesmo sentir aquele sabor e aquela textura. À medida que o tempo passa e esse desejo não é satisfeito, sentimo-nos cada vez mais desconfortáveis com o facto de não alcançarmos o que desejamos. Quando finalmente o conseguimos, as primeiras garfadas parecem-nos divinais e classificamos o desaparecimento da insatisfação que sentíamos como um grande prazer. “ISTO é mesmo bom” afirmamos com toda a convicção. Mas com o passar do tempo e garfada após garfada a insatisfação volta a instalar-se, seja com o receio que a comida que temos ao nosso dispor acabe e assim termine a experiência, seja com o começar a estar farto do que achámos que por si era mesmo bom e começarmos a desejar outra coisa, seja porque ficamos com medo de que se comermos demais nos possa fazer mal, seja porque começamos a sentirmo-nos cheios e a experiência passa de agradável a penosa e cada garfada que comemos torna-se um suplício. Pensamos “isto nunca mais acaba” e desejamos ardentemente o seu fim. Geralmente quando comemos nem vivemos plenamente a experiência no momento presente pois estamos focados na próxima garfada e na expectativa do que isso nos fará sentir. E aqui quando se fala de comida, o mesmo se aplica a bebida ou qualquer substância que tomemos para nos proporcionar “prazer” desde o café à heroína.
- Quando estamos sozinhos, sentimos o desejo de companhia, a nossa solidão torna-se penosa, cada vez mais difícil de suportar, é preciso satisfazer o desejo de companhia e enquanto isso não for concretizado sentimos insatisfação que cessa quando finalmente a obtemos. Sabe-nos tão bem não estar sozinhos que sentimos medo de perder a nossa companhia, e pronto lá está de novo a insatisfação. Ao fim de algum tempo começamos a sentir vontade de mudar de companhia ou de “ter o nosso espaço”, de não ter sempre alguém colado a nós o que se torna cada vez mais penoso, começamos a rejeitar a companhia que no início no fez tanta falta e a desejar estar sozinhos. Mais um ciclo…
- Mesmo o grande mito do prazer, o sexo não deixa estar permeado de insatisfação. Desejamos intensamente tê-lo e enquanto não o conseguimos sentimo-nos cada vez mais incomodados. Quando finalmente o obtemos pode revelar-se insatisfatório porque “é sempre o mesmo” e “já farta”, logo sentimos o desejo de “algumas variantes”; porque dura pouco e não corresponde às nossas expectativas o que gera desilusão, porque é longo demais e começamos a desejar que acabe. Mesmo quando foi o “timming perfeito” se nos perguntarem se “vai mais uma” parte de nós responderá que “já chega” e mesmo que “vá mais uma” mais tarde ou mais cedo a insatisfação do cansaço instala-se e surge o cada vez maior desejo que pare. Mesmo quando estamos a fazê-lo não estamos presentes no momento mas a pensar no que virá a seguir e no que gostaríamos que viesse a seguir.
- O grande consumismo a que assistimos nos dias de hoje não tem a ver com a publicidade com que somos bombardeados a toda a hora. Essa publicidade apenas se aproveita da nossa insatisfação e sugere que ela pode cessar se adquirirmos algo. Ao comprarmos algo sentimo-nos bem pois a insatisfação do desejo não concretizado desaparece, mas depressa surge a insatisfação em relação ao que adquirimos e o desejo de obter algo diferente. E lá vamos nós mais uma vez.
- A maioria de nós está insatisfeita com o facto de ter de trabalhar e conta os dias de 2ª a 6ª esperando ansiosamente pelo fim-de-semana, dizendo no início de cada dia “mais um dia” pois é algo penoso. Quando conseguem ir para a reforma, o tédio depressa se instala e anseiam por alguma actividade.
- Alguns de nós anseiam por ter filhos pois seguem o mito da “felicidade” que isso proporciona, pois é algo “muito giro”, ou procuram através de “assegurar descendência” reforçar as referências da sua identidade. Mas associado a isto existem imensas insatisfações: a de que ele pare de chorar, a da perca de liberdade, a de assegurar o seu futuro, muitas vezes colocando expectativas no que gostaríamos que os filhos viessem a ser (o curso, a profissão, o/a parceiro/a, os netos), pois acreditamos que isso NOS satisfaria, o medo que não corresponda a essas expectativas, que adoeça, etc.
- Relativamente às nossas relações é parecido com a anterior. Vemos uma pessoa ou tomamos um breve contacto com ela e logo se geram expectativas em relação ao que essa pessoa poderia ser para NÓS. Desejamos alcançar essa pessoa como via de nos proporcionar felicidade através da concretização das nossas expectativas. Sofremos enquanto não o alcançamos, e depois de alcançarmos sofremos com o medo de perder o que alcançámos ou que esse alguém se modifique em relação às características que tem e que acreditamos nos fará feliz. E se não houver mudança sentimos também insatisfação, seja pela necessidade de mudança nessa pessoa, seja de mudança para outra pessoa (que desta vez é que nos trará verdadeiramente felicidade – julgamos nós). Outras vezes estamos amarrados por laços sócio-culturais a essa pessoa e vivemos constantemente com a insatisfação de termos de estar com quem não queríamos, ou de que a pessoa com quem estamos não é como queríamos que fosse.
- Não poderia deixar de referir as insatisfações que fazem parte da embalagem de se ser humano: a do nascimento pois acarreta dores e desconforto, o da doença (nem preciso explicar porquê), o do envelhecimento (por mais que tentemos retardá-lo ou disfarça-lo, é inevitável e só sofremos perante a evidência do seu avanço por mais que o rejeitemos, sentimos insatisfação pela perda da beleza e vitalidade e pior será quanto mais agarrados estamos a elas. Muitas pessoas de idade desejam a morte, apesar de a temerem, porque o que querem de facto é o fim da insatisfação do envelhecimento) e o da morte (mesmo que racionalmente saibamos que é inevitável sentimos medo perante a possibilidade de perdermos a vida pois estamos apegados à nossa identidade).

Para quem isto parecer demasiado pessimista, então analisem profundamente as vossas experiências e vejam se de facto não são assim. Para aqueles que acham que as coisas são mesmo assim e não há nada a fazer, nem tudo é tão mau quanto parece pois já várias pessoas conseguiram libertar-se totalmente de todas as formas de insatisfação.

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