Esta estória foi escrita em 2002 a meias entre o meu amigo Led (partes 1, 3 e palavra "FIM") e eu (partes 2 e 4).
Parte 1
Um quarto para as cinco. Espero lá! Eu e as cinco. Que tal chegar a hora, esse quarto. Daqui estou pendurado. Pendurado no futuro inexistente de um momento que estou a criar e que teima em não nascer. Mais um pouco, cada vez mais um pouco mas sempre sem poder saber (embora pensando que sim). Noutra ponta um raio chega. Traz consigo riscos e suposto sentido ou pelo menos significado. Inútil. Nada. Grande alguidar de plástico ou qualquer coisa parecida com isso. Semelhante e igual. De forma totalmente diferente. Uma estória com peixes. Peixes que brilham e guardam tesouros no fundo do mar. Grandes cavernas recheadas de tesouros, verdadeiras maravilhas de luz. Um dia vi um destes peixes e segui-o pelo mar adentro. Mergulhei bem fundo e fui até à sua porta. Pedi para me deixar entrar. E entrei. Mas só um pouquinho, alguns passos por lá. Lindo, maravilhoso. Depois, penso que fiz um gesto brusco, ou falei alto, assustou-se. Possivelmente nunca ninguém tinha entrado ali, assim à vontade e com gosto. Assustado empurrou-me para fora, para o coração do oceano, quase nem tive tempo de inspirar fortemente e senti-me aflito para voltar à superfície, quase tão aflito me vi para voltar a para terra. Cansaço e água por todo o lado. Pelo percurso ainda vi o peixe, preocupado com a minha inadequação ao meio e receoso que tivesse levado algo comigo. Não teve tempo de me revistar. Nada que preocupasse e só agora me lembrava disso, até teria sido boa ideia, mas..... não, nunca me teria lembrado disso, além do mais agora queria um pouco de terra e descanso, uma bela ilha com palmeiras e alguns canibais. Tenho conhecimentos nestes meios, certamente que não me deixariam mal. E não me deixaram. Simpáticos e alegres com sempre. Era bom estar em algo que se assemelhasse a casa. Foi nessa altura que passou um barco e deu-me boleia. O capitão era um velho amigo, excelente bailarino. Transportava com ele um papagaio e um dia a conversar com uma arara amiga dele descobri que ela brilhava. O mesmo brilho do peixe mas apenas no bico, até porque o corpo estava coberto de penas que transportavam o pó de muitas milhas de mar. (muitas milhas de mar) esse estranho que os peixes libertam e que cobre a superfície dos outros seres. É raro que se fixem na pele dos homens. Conheci apenas alguns contaminados. Que sorte, valem ouro e mais que isso.
Parte 2
Não os conheci mesmo na intimidade. Na realidade só os vi de vez em quando no mercado, sempre entre a banca do vendedor de peixe e a do chá. Chegavam sempre quando faltavam um quarto para as cinco e eram despidos de forma a que se visse a sua pele brilhante. Ficavam apenas com um número numa tabuleta pendurada ao pescoço de modo a serem identificados durante o leilão. Pelas cinco chegavam todos os gentleman. Vinham para tomar chá mas, não resistiam a licitar um ou dois contaminados. Era um espectáculo interessante. As mulheres que vinham comprar peixe olhavam fascinadas, sabendo que nunca poderiam participar. Os preços subiam em flecha. Alguns empenhavam todos os seus bens para poder comprar um homem de pele brilhante. Mas valia a pena, quando no fim o levavam atrás de si, mesmo que já não tivessem casa para onde ir. E era assim que se passava na feira de Habbid, sempre
a um quarto para as cinco. Recordava os tempos em que era menino e a minha mãe me
levava à feira quando ia comprar o peixe. Na longa viagem de volta à aldeia sonhava um dia poder também comprar um homem de pele brilhante. Sonhos de criança. Sonhos que partilhava com os meus companheiros de brincadeira que, apesar de ouvirem sempre o mesmo relato, não se cansavam de se sentarem à minha volta e serem embalados pela estória tão extraordinária que parecia fantasia. Um dia, mais velho, peguei na minha trouxa e decidi partir em busca da ilha dos homens brilhantes, de mares nunca dantes navegados e de aventuras nunca dantes vividas. Foi nessa altura que conheci o capitão e o seu navio, a bordo do qual fui marujo.
Parte 3
Foi provavelmente o período mais intenso da minha vida. Algo estranho tentar manter vivo em mim tudo o que era ali num deserto de água e relações. Não mais vi a minha família e amigos. Mas mais, sabia que estavam irremediavelmente para trás. Era muito difícil mantê-los vivos em mim de forma a manter-me a mim mesmo definido. A coisa que mais gostava era ficar à proa sentado sentindo o mar. Observa-lo mutante, ora irado ora letárgico, incapaz de diferenciar uma onda de outra e uma onda do mar, percebe-lo em partes e como um todo. E depois por entre a transparência do mar ver os peixes que brilhavam, ver essa estranhas atracções para a água. Não me recordo quantas vezes hesitei e pus-me de pé olhando a água pronto para saltar. Nunca me consigo lembrar mesmo de alguma vez ter tido uma boa razão para não saltar. Talvez nunca tenha visto um daqueles brilhos irresistíveis, e diz-se que quando se vê um salta-se mesmo. Um dia vi isso. Um colega meu observava o mar. Descontraído. Vi-o na distância a subir calmamente a borda e saltar. Assim com esta naturalidade. Sem mais nada. Realmente estranho e fascinante. Mais do que o peixe que nos atrairia acho que era o momento e esse gesto automático de certeza e livre vontade do salto que me fascinava. Fiz bastantes viagens. Mais do que qualquer outro que conheci sem nunca ter saltado e sempre á proa do barco. E sempre em busca dessa ilha encantada dos homens brilhantes. Diziam que as suas palavras eram doces e penetrantes, que estar simplesmente com eles era um prazer. Eram o próprio mar a ser pessoa. Ao longo destas viagens comecei eu a ficar brilhante. Antes era apenas um pequeno brilho interior suave e observar o brilho de tudo o que me rodeava: as pessoas e os objectos. Mais tarde tornou-se mesmo obvio e presente o meu brilho......
Parte 4
E com esse brilho fez-se luz. Uma luz interior que iluminava o meu espírito e me fazia compreender tudo, abarcar tudo. Agora sim, finalmente percebia como tudo se relacionava, como tudo estava interligado. Saltei!...Desta vez nem sequer pensei em fazê-lo, pura e simplesmente aconteceu. Tinha descoberto o segredo dos homens brilhantes. Olhei à minha volta... não estava no mar...tinha-me tornado no mar...eu era o mar!!!! Senti o barco atravessar-me. Afastei-me para o deixar passar e voltei a fechar-me atrás de si, sempre a abraçá-lo, sempre a acompanhá-lo onde quer que fosse. Olhei para as estrelas...eu era as estrelas brilhando lá longe nos confins do universo...eu era o universo!!! Retornei à minha forma de homem e acostei a uma ilha.
Pus o pé na praia. O brilho do meu corpo reflectia-se na areia dourada. Lá estavam eles, os outros homens brilhantes. Dirigi-me a eles sem dizer palavra. Não era preciso. Comunicávamos sem falar, víamos sem olhar, sabíamos sem ser preciso aprender. Reconheci um que estava mesmo à minha frente. Era o peixe que outraora tinha seguido até ao fundo do mar.
FIM
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
Peixes
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1 comentário:
Ganda malha! O Marques disse-me para cá vir ver isto. Muito fixe.
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